Pimba na gorduchinha*

Campo do Ginásio, quatro horas da tarde. Segunda-feira de calor insuportável. Dois times no campo e mais dois de fora esperando a vez. O gramado, castigado pelas chuvas de verão, tinha o centro totalmente cercado pelo barro, que como um clarão vermelho, provocado pelos pés descalços da turma, era cercado pelo barranco, no lado direito de quem sobe; pela chácara, do lado direito de quem desce, e pela moradia atrás do gol de cima, que possuía um matagal silencioso e muros bem altos.

A bola Drible branquinha, novidade da época, rola pelo gramado ruim e enche nossas vidas, humildes e bem vividas misturadas, democraticamente divididas em com ou sem camisas. Garotos com ou sem futuro misturados para conquistar a verdadeira liberdade, uma vitória em uma pelada no campo do Ginásio.

O primeiro chute errado e a bola, branquinha, cai por cima do muro da moradia. Faz-se um silêncio total. O medo de não ter o retorno da Drible provoca arrepios na garotada, principalmente em Hamiltão, autor do chute com endereço errado. Mas, de repente, não mais que de repente, como se fosse rebatida em um bate-pronto alinhado, a pelota voltou quicando e parando no barro.

Mais alguns minutos e Miguel, nosso grande artilheiro, manda outro balaço contra as traves de Lucho. Não acostumado com a maciez e com a leveza da Drible, mesmo que encharcada pelo barro molhado, Miguel arremessa novamente a “gorduchinha” por cima do muro. Desta vez a bola nos foi devolvida por um ancião, que como se cobrasse um arremesso lateral, usou as duas mãos para fazer a devolução de nossa preciosa companhia.

O relógio já marcava quase seis da tarde quando outros dois times adentravam o castigado gramado do Ginásio. O sol já escondera e a luz natural já estava fraquinha quando um terceiro petardo ultrapassou os limites da moradia. César errara o cruzamento e desta vez a Drible caíra na varanda. 

Não houve devolução. Todos se espantaram e já preparavam as contas para um novo racha no bolso dos peladeiros para a compra de uma nova Drible. A bola não voltara. Ficara por lá. Mas cinco ou dez minutos após desce um cidadão forte, até que meio gordo, vestindo apenas uma bermuda moderna, peito nu e cabelo ajeitado com gumex. Era o dono da residência.


A garotada, até certo ponto amedrontada com a cena, ameaçou um apelo para que a bola fosse devolvida. O cidadão foi andando até o meio do barro, com um estilo até bonachão, e quando todo mundo ameaçava um agradecimento coletivo ouviu-se um tiro. 

Um tiro apenas. O suficiente para que todos corressem sem tempo de ver a “gorduchinha" dormindo eternamente no meio do campo do Ginásio, murcha e completamente inutilizada, já que os outros cinco tiros disparados não foram ouvidos pela turma, que descia a estradinha que dá acesso a Rua do Ferreira em desabalada carreira. 

Com medo da morte a garotada deixou a branquinha sozinha na noite daquela segunda-feira.

*Texto baseado em uma crônica do mestre Armando Nogueira

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